sábado, 31 de outubro de 2009





UMA RADIOGRAFIA ANTROPOLÓGICA DO ESPIRITISMO



Seria o Espiritismo uma ideologia migrante? Dos Estados Unidos, onde surgiu de forma empírica nos anos 40 do século XIX, para a Europa, onde vestiu-se com uma densa filosofia, que chegou a empolgar a intelectualidade francesa da segunda metade do século, e com cuja roupa migrou para o Brasil, onde se transforma em movimento social e religioso e, nessa forma, retorna à França e aos Estados Unidos, embalada nas ondas migratórias do final do século XX?

É uma das idéias que se percebe no extenso trabalho da pesquisadora francesa, doutora em antropologia, Marion Aubrée, e de seu professor orientador, François Laplantine, publicado pelas Éditions Jean-Claude Lattès, 1990, num livro de 340 páginas, sob o título: "La Table, le Livre et les Esprits", e subtítulo: "Naissance, évolution et actualité du mouvement social spirite entre France et Brésil".

O trabalho é completo. Começa pelo surgimento do espiritismo na América, biografa Allan Kardec, demonstra a repercussão da doutrina na Europa do século passado, e analisa as causas de seu declínio. Depois, viaja ao Brasil (onde os pesquisadores estiveram várias vezes), e procura levantar as causas de sua grande aceitação popular, de sua penetração social, de suas transformações, de quebra ensaiando uma explicação antropológica do próprio Brasil, quando aborda o mito criador do espiritismo brasileiro contemporâneo: la brasiliodicée. Para, finalmente, retornar à França e discorrer sobre as práticas e grupos atuais.

Algumas "subteses" do trabalho apresentam um interesse especial, como as relações entre espiritismo e socialismo, colocadas num capítulo que tem como título: "Quand les barricades rencontrent les guéridons". Aqui os autores dizem que "... il y a une parenté et une connivence entre le socialisme et le spiritisme au XIXe. Siècle qui ne cesse d"entremêler les deux thèmes", e afirma categoricamente que "... l"un est littéralemente incompréhensible sans l"autre". Estamos transcrevendo estes trechos em francês porque não está tão difícil a compreensão.

Analisando o apogeu e o declínio do Espiritismo na França, os autores relacionam algumas causas. Primeiramente, referem-se eles à fraude dos médiuns que buscavam a qualquer preço provar sua força mediúnica. Depois, ao progresso das descobertas científicas, principalmente na astronomia, tornando anacrônica a doutrina espírita por sugerir que as comunicações tendem a reproduzir o meio social e cultural onde são transmitidas: os espíritos ensinam a geração expontânea quando ela é ensinada na universidade; professam a teoria dos planetas habitados até que se descobre que eles não o são. Uma outra razão repousa nas dissensões entre espíritas e ocultistas (Papus), entre espíritas e teosofistas (Blavatski), assim como à atração exercida pelas sociedades metapsíquicas. Também teria influído nesse declínio, o surgimento na literatura (Dostoieviski) e na filosofia (Schopenhauer, Nietzsche) de uma certa exploração da face noturna do ser humano, seguida do fenecimento do romantistmo. Até mesmo a substituição do paradigma positivista pelo relativista teve sua influência, provocando um declínio do absoluto, um enfraquecimento da certeza, uma sensação de que a ciência não detém toda a verdade, mas, ao contrário, a arte e a literatura podem proporcionar formas mais profundas de conhecimento. Mas, segundo os autores, o golpe de misericórdia no Espiritismo foi dado pelas pesquisas de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, pondo em evidência o papel do inconsciente e oferecendo aos sábios uma tentadora explicação sobre os mecanismos da comunicação mediúnica.

As "seduções" sofridas por um dos autores (FL) no Brasil, demonstram uma característica marcante do espiritismo brasileiro. Coisas do tipo: "Humberto de Campos me disse que você tem uma grande missão com esse trabalho", ou "Allan Kardec está acompanhando você nesta pesquisa". Mas, sem dúvida, os médiuns que lançaram essas lisonjas ficarão, ou ficaram, decepcionados com a leitura final do trabalho, tendo em vista a quase frieza científica e distanciamento com que os autores o conduziram.

Pode-se notar uma verdadeira explosão de teses universitárias sobre espiritismo no Brasil ultimamente. Tanto nos grande centros (Giumbelli, Rio; Damásio, Rio; Stoll, São Paulo; Colombo, São Paulo) como nas inúmeras Universidades Estaduais do interior. Espero que não sejam simples conseqüência do impulso imitativo da intelectualidade brasileira no rastro de pesquisadores como François Laplantine da França e John David Hess dos Estados Unidos. De qualquer forma, elas ocorrem sempre nas áreas de Antropologia, Ciências Sociais, História, isto é, encarando o Espiritismo como um movimento social ou religioso. Desconheço, na presente tendência, alguma tese que o trate como filosofia ou ciência.

Enfim, "La Table..." é um "olhar de fora", e como tal observa muito mais as práticas do que a doutrina. Mas, não podemos negar que muito tem a contribuir para a compreensão do Espiritismo. A Dra. Marion Aubrée elaborou várias teses sobre movimentos religiosos e sociais. O Professor François Laplantine orientou dezenas de teses em antropologia, inúmeras ligadas a religião, fenômenos psi e doenças mentais. O próprio Jean-Claude Lattès parece ser um especialista em editar teses universitárias. Já existem pessoas no Brasil se interessando pela tradução e publicação do livro, o que poderá acontecer brevemente. Enquanto isso, quem quiser adquirir o livro em francês a um custo final menor que setenta reais, pode procurar no site: alapage.com.



João Alberto Vendrani Donha

Centro Espírita Luz Eterna – CELE

cele@cele.org.br.br

(Publicado no jornal "Abertura", de junho/2000)

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